Fundação CARF

24 de agosto, 20

Artigos de Especialistas

A Eucaristia, memorial do coração

Em outras ocasiões, aludimos a uma história que Joseph Ratzinger conta nas suas meditações dos anos 80. Façamo-lo novamente.

Um homem tinha perdido a "memória do coração". Ou seja, "ele tinha perdido toda a cadeia de sentimentos e pensamentos que ele tinha valorizado no encontro com o dor humana". Porque é que isto aconteceu e quais foram as consequências? Um tal desaparecimento da memória do amor tinha-lhe sido oferecido como uma libertação do fardo do passado.

Mas depressa se tornou claro que o homem tinha mudado com ele: o encontro com a dor já não despertava nele memórias de bondade. Com a perda de memória, a fonte de bondade dentro dele também desapareceu. Ele tinha-se tornado frio e emanou frieza à sua volta".

Esta história é útil tendo em conta a pregação do Papa Francisco na Solenidade de Corpus Christi (14-VI-2020).

 

 

Memória e sentimentos

A memória é algo importante para todas as pessoas. O Papa observa na sua homilia nesta festa: "Se não nos lembramos (...), tornamo-nos estranhos para nós mesmos, 'transeuntes' em existência. Sem memória estamos desenraizados do chão que nos sustenta e somos levados como folhas ao vento. Por outro lado, fazer memória é amarrar-se a laços mais fortes, sentir-se parte de uma história, respirar com um povo".

E é por isso que a Sagrada Escritura insiste em educar os jovens nesta "memória" ou lembrança das tradições e história do povo de Israel, especialmente das ordens e dons do Senhor (cf. Sl 77 12; Dt 6:20-22).

Os problemas surgem se - como é agora o caso da transmissão da fé cristã - ela é interrompida ou se o que ela ouve falar não foi vivido, a memória dos indivíduos e dos povos é posta em risco.

O Senhor deixou-nos um "memorial". Não apenas algo para recordar, mas para trazer à mente. Não apenas palavras ou símbolos. Ele deu-nos um alimento que é continuamente eficaz, o Pão vivo que é Ele próprio: a Eucaristia. E ele deu-nos como "feito", porque nos encarregou de "o fazer", celebrá-lo como povo e como família: "Fazei isto em memória de mim" (1 Cor 11,24). A Eucaristia, assinala Francisco, é o memorial de Deus.

De facto, a Eucaristia é "memória", uma memória viva ou memorial que renova (ou "actualiza" sem a repetir) a Páscoa do Senhor, a sua morte e ressurreição, entre nós. É a memória da nossa fé, da nossa esperança, do nosso amor.

A Eucaristia é o memorial de tudo o que somos, a memória - pode-se também dizer - do coração, dando a este último termo o seu significado bíblico: a totalidade da pessoa. Um homem vale o que vale o seu coração e isto inclui - como na história contada pelo Cardeal Ratzinger - a capacidade de bondade e a capacidade de compaixãoOs sentimentos do cristão estão a tornar-se identificados com os sentimentos do próprio Cristo.

A Eucaristia, o memorial do coração, cura, preserva e fortalece toda a pessoa do cristão. E por esta razão, como o Igrejaa Eucaristia é a fonte e culminação da Vida cristã e a missão da Igreja (cf. Bento XVI, Exort. Sacramentum caritatis, 2007).

Na solenidade do Corpus ChristiFrancisco tem estado a desfazer o poder curativo deste "memorial" que é a Eucaristia. Ao fazê-lo, ele mostra-nos a importância da Eucaristia na formação dos nossos sentimentos em relação a Deus e aos outros.

Disso depende também o que poderíamos chamar de educação afectiva - que nunca termina para cada pessoa - e a ligação afectiva com Deus e com os outros: saber "situar-se" em frente dos outros - os nossos familiares e amigos, os nossos colegas e colegas de trabalho, as pessoas que encontramos todos os dias.

"Assumir" interiormente o controlo do que lhe acontece, a fim de saber como comunicar e para expressar os nossos sentimentos de forma apropriada, quando apropriado, para integrá-los nas nossas decisões e actividades, como uma parte importante da atracção da própria vida cristã. A Eucaristia ocupa assim um lugar central em ligação com a discernimentoPrecisamos de estar conscientes das implicações espirituais e eclesiásticas de todas as nossas acções.

O poder curativo da Eucaristia na memória

A Eucaristia cura a memória dos órfãos e cura as suas feridas. Ou seja, "a memória ferida pela falta de afecto e as amargas desilusões recebidas de quem deveria ter dado amor, mas que em vez disso deixou o coração desolado". A Eucaristia infunde-nos um amor maior, o amor do próprio Deus.. Assim diz o Papa:

"A Eucaristia traz-nos o amor fiel do Pai, que cura a nossa orfandade. Dá-nos o o amor de Jesusque transformou um túmulo de um ponto de chegada a um ponto de partida, e que da mesma forma pode mudar as nossas vidas. Ele comunica-nos o amor do Espírito Santo, que consola, porque ele nunca deixa ninguém sozinho, e cura feridas.

Em segundo lugar, a Eucaristia cura a nossa memória negativa. Essa "memória" que "traz sempre à superfície as coisas que estão erradas e nos deixa com a triste ideia de que somos bons para nada, que só cometemos erros, que estamos errados". E isso coloca sempre os nossos problemas, as nossas quedas, os nossos sonhos quebrados à nossa frente.

Jesus vem dizer-nos que isto não é assim. Que nós somos valiosos para eleque vê sempre o bem e o belo em nós, que deseja a nossa companhia e o nosso amor. "O Senhor sabe que o mal e os pecados não são a nossa identidade; eles são doenças, infecções. E - com bons exemplos nisto época pandémicaO Papa explica como a Eucaristia os "cura" - ele vem curá-los com a Eucaristia, que contém os anticorpos para a nossa memória doentia da negatividade. Com Jesus, podemos imunizar-nos da tristeza. E é por isso que o poder da Eucaristia - quando tentamos recebê-la com as melhores disposições, para que dê todos os seus frutos em nós - transforma-nos em portadores de Deus, o que é o mesmo que dizer: "A Eucaristia é um dom de Deus": portadores de alegria.

Em terceiro lugar, a Eucaristia sara a nossa memória fechada. A vida muitas vezes deixa-nos feridos. E isso torna-nos temerosos e desconfiados, cínicos ou indiferentes, arrogantes..., egoístas. Tudo isto, observa o sucessor de Peteré um engano, pois só o amor cura o medo de raiz e liberta-nos da teimosia que aprisiona". Jesus vem para nos libertar dessas armaduras, bloqueios interiores e paralisia do coração.

"O Senhor, que se nos oferece na simplicidade do pão, também nos convida a não desperdiçar as nossas vidas na busca de mil coisas inúteis que criam dependência e nos deixam vazios por dentro. A Eucaristia tira em nós a fome de coisas e acende em nós a desejo de servir". Ajuda-nos a levantar-nos para ajudar outros que têm fome de comida, dignidade e trabalho. Ela convida-nos a estabelecer verdadeiras cadeias de solidariedade.

A Eucaristia cura a nossa memória órfã e ferida, a nossa memória negativa e a nossa memória fechada. A isto Francisco acrescenta, no seu Angelus de 14 de Junho, a explicação dos dois efeitos da Eucaristia: o efeito místico e o efeito comunitário.

Efeito místico e efeito comunitário

O efeito místico (místico em relação ao mistério profundo que ali se produz) refere-se à cura da nossa "memória ferida" da qual ele falou na sua homilia. A Eucaristia cura e transforma-nos interiormente através da nossa intimidade com Jesus; pois o que tomamos, sob a aparência de pão ou de vinho, é nada menos que o corpo e o sangue de Cristo (cf. 1 Cor 10,16-17).

Jesus", explica mais uma vez o Papa, "está presente no sacramento da Eucaristia ser o nosso alimento, ser assimilado e tornar-se em nós aquela força renovadora que nos devolve a nossa energia e nos devolve o desejo de voltar ao bom caminho depois de cada pausa ou depois de cada queda".

Ao mesmo tempo, ele aponta como devem ser as nossas disposições para que tudo isto seja possível; acima de tudo, "a nossa vontade de nos deixarmos transformar, a nossa maneira de pensar e de agir".

Isto é assim, e esta vontade manifesta-se ao abordar a Eucaristia com uma consciência livre de pecado grave (tendo frequentado previamente o sacramento da Penitência, se necessário), em deixe-nos ajudar por aqueles que o podem fazer para formar a nossa consciência, para rectificar os nossos desejos, para orientar as nossas actividades na direcção certa de acordo com as nossas circunstâncias, para que a nossa vida tenha um verdadeiro sentido de amor e serviço.

Por todas estas razões, Francisco salienta que o Missa não é simplesmente um acto social ou de respeito, mas um acto vazio de conteúdo. É "Jesus presente que nos vem alimentar".

Tudo isto está ligado ao efeito comunitário da Eucaristia, que é o seu objectivo último, tal como expresso nas seguintes palavras São PauloPois embora sejamos muitos, somos um só pão e um só corpo" (Ibid., v. 17). Ou seja, fazer dos seus discípulos uma comunidade, uma família que supere as rivalidades e invejas, preconceitos e divisões. Ao dar-nos o dom do amor fraterno podemos alcançar o que ele também nos pediu: "Permanecei no meu amor" (Jo 15,9).

Desta forma", conclui Francisco, "não é só que o Igreja A Eucaristia "faz" a Eucaristia; mas também e finalmente a Eucaristia faz a Igreja, como um "mistério de comunhão" para a sua missão. Uma missão que começa precisamente por produzir e aumentar a nossa unidade. Assim é, e como o Igreja pode ser a semente da unidade, da paz e da transformação do mundo inteiro.

Sr. Ramiro Pellitero Iglesias
Professor de Teologia Pastoral
Faculdade de Teologia
Universidade de Navarra

Publicado em "Igreja e nova evangelização".

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