Mas depressa se tornou claro que o homem tinha mudado com ele: o encontro com a dor já não despertava nele memórias de bondade. Com a perda de memória, a fonte de bondade dentro dele também desapareceu. Ele tinha-se tornado frio e emanou frieza à sua volta".
Esta história é útil tendo em conta a pregação do Papa Francisco na Solenidade de Corpus Christi (14-VI-2020).
A memória é algo importante para todas as pessoas. O Papa observa na homilia desta festa: "Se não nos lembramos (...), tornamo-nos estranhos a nós mesmos, "transeuntes" da existência. Sem memória, somos arrancados do solo que nos sustenta e somos levados como folhas ao vento. Por outro lado, recordar é atarmo-nos com laços mais fortes, sentirmo-nos parte de uma história, respirar com um povo".
E é por isso que a Sagrada Escritura insiste em educar os jovens nesta "memória" ou lembrança das tradições e história do povo de Israel, especialmente das ordens e dons do Senhor (cf. Sl 77 12; Dt 6:20-22).
Os problemas surgem se - como é agora o caso da transmissão da fé cristã - ela é interrompida ou se o que ela ouve falar não foi vivido, a memória dos indivíduos e dos povos é posta em risco.
O Senhor deixou-nos um "memorial". Não apenas algo para recordar, mas para trazer à mente. Não apenas palavras ou símbolos. Ele deu-nos um alimento que é continuamente eficaz, o Pão vivo que é Ele próprio: a Eucaristia. E deu-nos isso como um negócio fechado, porque nos encarregou de o fazer, celebrá-lo como povo e como família: "Fazei isto em memória de mim" (1 Cor 11,24). A Eucaristia, assinala Francisco, é o memorial de Deus.
De facto, a Eucaristia é uma memória, uma memória viva ou um memorial que renova (ou actualiza sem o repetir) a Páscoa do Senhor, a sua morte e ressurreição, entre nós. É a memória da nossa fé, da nossa esperança, do nosso amor.
A Eucaristia é o memorial de tudo o que somos, a memória - pode-se também dizer - do coração, dando a este último termo o seu significado bíblico: a totalidade da pessoa. Um homem vale o que vale o seu coração E isto inclui - como na história contada pelo Cardeal Ratzinger - a capacidade de bondade e compaixão, que no cristão se está a identificar com os sentimentos do próprio Cristo.
A Eucaristia, memorial do coração, cura, conserva e fortalece toda a pessoa do cristão. Por isso, como diz a Igreja, a Eucaristia é a fonte e o cume da vida cristã e da missão da Igreja (cf. Bento XVI, Exort. Sacramentum caritatis, 2007).
Na solenidade do Corpus ChristiFrancisco tem estado a desfazer o poder curativo deste "memorial" que é a Eucaristia. Ao fazê-lo, ele mostra-nos a importância da Eucaristia na formação dos nossos sentimentos em relação a Deus e aos outros.
Disso depende também o que poderíamos chamar de educação afectiva - que nunca termina em cada pessoa - e a ligação afectiva com Deus e com os outros: saber situar-se perante os outros - os nossos familiares e amigos, os nossos colegas e companheiros de trabalho, as pessoas que encontramos todos os dias.
O "tomar conta" interior do que lhes acontece, saber comunicar e exprimir adequadamente os nossos sentimentos, integrá-los nas nossas decisões e actividades, é uma parte importante do atrativo da própria vida cristã. A Eucaristia ocupa assim um lugar central na relação com a discernimentoPrecisamos de estar conscientes das implicações espirituais e eclesiásticas de todas as nossas acções.
A Eucaristia cura a memória dos órfãos e cura as suas feridas. Ou seja, "a memória ferida pela falta de afecto e as amargas desilusões recebidas de quem deveria ter dado amor, mas que em vez disso deixou o coração desolado". A Eucaristia infunde-nos um amor maior, o amor do próprio Deus.. Assim diz o Papa:
"A Eucaristia traz-nos o amor fiel do Pai, que cura a nossa orfandade. Dá-nos o amor de Jesus, que transformou um túmulo de ponto de chegada em ponto de partida e que, do mesmo modo, pode mudar a nossa vida. Comunica-nos o amor do Espírito Santo, que consola, porque nunca deixa ninguém sozinho, e cura as feridas".
Em segundo lugar, a Eucaristia cura a nossa memória negativa. Essa "memória" que "traz sempre à superfície as coisas que estão erradas e nos deixa com a triste ideia de que somos bons para nada, que só cometemos erros, que estamos errados". E isso coloca sempre os nossos problemas, as nossas quedas, os nossos sonhos quebrados à nossa frente.
Jesus vem dizer-nos que isto não é assim. Que nós somos valiosos para eleque vê sempre o bem e o belo em nós, que deseja a nossa companhia e o nosso amor. "O Senhor sabe que o mal e os pecados não são a nossa identidade, são doenças, infecções. E - com bons exemplos neste tempo de pandemia, o Papa explica como a Eucaristia cura - vem curá-los com a Eucaristia, que contém os anticorpos para a nossa memória doente de negatividade.
Com Jesus, podemos imunizar-nos contra a tristeza. E é por isso que a força da Eucaristia - quando procuramos recebê-la com as melhores disposições, para que ela dê todos os seus frutos em nós - nos transforma em portadores de Deus, o que é o mesmo que dizer: portadores de alegria.
Em terceiro lugar, a Eucaristia cura a nossa memória fechada. A vida deixa-nos muitas vezes feridos. E torna-nos temerosos e desconfiados, cínicos ou indiferentes, arrogantes..., egoístas. Tudo isto, observa o sucessor de Pedro, "é um engano, pois só o amor cura o medo pela raiz e liberta-nos da obstinação que nos aprisiona". Jesus vem libertar-nos destes grilhões, bloqueios interiores e paralisias do coração.
"O Senhor, que se nos oferece na simplicidade do pão, também nos convida a não desperdiçar as nossas vidas na busca de mil coisas inúteis que criam dependência e nos deixam vazios por dentro. A Eucaristia tira em nós a fome de coisas e acende em nós a desejo de servir". Ajuda-nos a levantar-nos para ajudar outros que têm fome de comida, dignidade e trabalho. Ela convida-nos a estabelecer verdadeiras cadeias de solidariedade.
A Eucaristia cura a nossa memória órfã e ferida, a nossa memória negativa e a nossa memória fechada. A isto Francisco acrescenta, no seu discurso do Angelus de 14 de junho, a explicação dos dois efeitos da Eucaristia: o efeito místico e o efeito comunitário.
O efeito místico (místico em relação ao mistério profundo que ali se produz) refere-se à cura da nossa "memória ferida" da qual ele falou na sua homilia. A Eucaristia cura e transforma-nos interiormente através da nossa intimidade com Jesus; pois o que tomamos, sob a aparência de pão ou de vinho, é nada menos que o corpo e o sangue de Cristo (cf. 1 Cor 10,16-17).
Jesus", explica mais uma vez o Papa, "está presente no sacramento da Eucaristia ser o nosso alimento, ser assimilado e tornar-se em nós aquela força renovadora que nos devolve a nossa energia e nos devolve o desejo de voltar ao bom caminho depois de cada pausa ou depois de cada queda".
Ao mesmo tempo, assinala como devem ser as nossas disposições para que tudo isto seja possível; acima de tudo, "a nossa vontade de nos deixarmos transformar, a nossa maneira de pensar e de agir".
Assim é, e esta vontade manifesta-se em aproximar-se da Eucaristia com uma consciência livre de pecados graves (tendo antes frequentado o sacramento da Penitência, se necessário), em deixar-se ajudar por aqueles que nos podem ajudar a formar a nossa consciência, a retificar os nossos desejos, a orientar as nossas actividades na direção certa, de acordo com as nossas circunstâncias, para que a nossa vida tenha um verdadeiro sentido de amor e de serviço.
Por todas estas razões, sublinha Francisco, a Missa não é um simples ato social ou de respeito, mas está vazia de conteúdo. É "Jesus presente que vem para nos alimentar".
Tudo isto está ligado ao efeito comunitário da Eucaristia, que é o seu objectivo último, tal como expresso nas seguintes palavras São PauloPois embora sejamos muitos, somos um só pão e um só corpo" (Ibid., v. 17). Ou seja, fazer dos seus discípulos uma comunidade, uma família que supere as rivalidades e invejas, preconceitos e divisões. Ao dar-nos o dom do amor fraterno podemos alcançar o que ele também nos pediu: "Permanecei no meu amor" (Jo 15,9).
Assim - conclui Francisco - não é só a Igreja que "faz" a Eucaristia; mas também e finalmente a Eucaristia faz a Igreja, como "mistério de comunhão" para a sua missão. Uma missão que começa precisamente por produzir e aumentar a nossa unidade. É assim, e assim a Igreja pode ser semente de unidade, de paz e de transformação do mundo inteiro.
Sr. Ramiro Pellitero Iglesias
Professor de Teologia Pastoral na Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra.
Publicado em Igreja e nova evangelização.