No seu homilia na Basílica de São PedroO Papa evocou a iniciativa da Palavra de Deus em criar o mundo, e o seu amor em ter-nos escolhido em Cristo, a sua Palavra eterna. Se no Antigo Testamento Deus nos falou através dos profetas, na plenitude dos tempos esta Palavra foi cumprida: já não é uma promessa, mas tornou-se realidade (cf. Lc 4,21). Agora, "pelo poder do Espírito Santo ele tem habitado entre nós e quer fazer de nós a sua morada, para satisfazer as nossas expectativas e curar as nossas feridas".
Como aqueles judeus que o contemplaram na sinagoga de Nazaré, mantendo os olhos fixos nele (cf. Lc 4,20), também nós devemos ser capazes de compreender a novidade radical desta Palavra que é Cristo. Nele, propõe Francisco, podemos contemplar dois aspectos ligados entre si: "a Palavra revela Deus e a Palavra leva-nos ao homem". Ela está no centro, ela revela Deus e leva-nos ao homem".
Primeiro, a Palavra revela Deus. "Revela-nos o rosto de Deus como Aquele que cuida da nossa pobreza e se preocupa com o nosso destino".. Não como um tirano fechado no céu, nem como um observador frio, indiferente e imperturbável, um deus neutro e indiferente. Ele é o "Deus conosco", Palavra feita carne, que toma partido em nosso favor e está envolvido e comprometido com a nossa dor, o "Espírito Amoroso" do homem.
Como porta-voz qualificado dessa Palavra na Igreja, Francisco dirige-se aos seus ouvintes, cada um de nós, pessoalmente:
"Ele é um Deus próximo, compassivo e ternoEle quer aliviá-lo dos fardos que o esmagam, ele quer aquecer o frio dos seus Invernos, ele quer iluminar os seus dias sombrios, ele quer apoiar os seus passos incertos. E fá-lo com a sua Palavra, com a qual ele lhe fala a fim de regressar a para acender a esperança no meio das cinzas dos seus medos, para o fazer encontrar novamente a alegria. nos labirintos das suas tristezas, para encher de esperança a amargura da sua solidão. Ele faz-te andar, não num labirinto, mas ao longo do caminho, para o encontrares todos os dias".
E é por isso que Francisco nos pergunta se carregamos no coração e transmitimos na Igreja esta verdadeira "imagem" de Deus, envoltos na confiança, misericórdia e alegria da fé. Ou se, pelo contrário, o vemos e mostramos de uma forma rigorosa, envolto em medo, como um falso ídolo que não nos ajuda nem ajuda mais ninguém.
"A Palavra de Deus não é letra morta, mas espírito e vida".
Em segundo lugar, a Palavra leva-nos ao homem. Quando compreendemos que Deus é compassivo e misericordioso, superamos a tentação de uma religiosidade fria e externa que não toca e transforma a vida. "A Palavra exorta-nos a sair de nós mesmos a fim de nos lançarmos ao encontro dos nossos irmãos e irmãs com a única força humilde do amor libertador de Deus".
Foi isto que Jesus fez e disse na sinagoga em Nazaré, quando revelou que "Ele é enviado para se encontrar com os pobres - que somos todos nós - e libertá-los". Ele não veio para entregar um conjunto de regras, mas para nos libertar das correntes que aprisionam as nossas almas.. "Desta forma ele revela-nos qual é o culto que mais agrada a Deus: cuidar do nosso próximo".
Daí que a Palavra de Deus se oponha à rigidez: "A rigidez não nos muda, apenas nos esconde, a Palavra de Deus nos muda". Penetra a alma como uma espada (cf. Heb 4:12): por um lado consola, revelando-nos o rosto de Deus; por outro lado provoca-nos e abana-nos, mostrando-nos as nossas contradições e pondo-nos em crise. "Não nos deixa em paz, se o preço desta paz é pago por um mundo dilacerado pela injustiça e pela fome, e aqueles que sofrem as consequências são sempre os mais fracos (...) A Palavra põe em crise aquelas nossas justificações que fazem sempre depender o que não funciona do outro ou dos outros".
O Papa não fala de teorias: "Quanta dor sentimos quando vemos os nossos irmãos e irmãs morrerem no mar porque não estão autorizados a desembarcar".
A Palavra de Deus convida-nos a sair para a rua, a não nos escondermos atrás da complexidade dos problemas, atrás do "não há nada a fazer" ou do "que posso fazer" ou do "problema é deles ou dele". Ele exorta-nos a agir, a unir o culto a Deus e o cuidado do homem".
Além da rigidez, que para Francisco é típica do Pelagianismo moderno, toda "espiritualidade" "angélica" ou desencarnada, típica dos movimentos neognósticos, também se opõe à Palavra de Deus. O Papa descreve-o graficamente: "Uma espiritualidade que nos coloca 'em órbita' sem tomar conta dos nossos irmãos e irmãs".
Por outro lado: "O Verbo que se fez carne (cf. Jo 1,14) quer encarnar em nós. Não nos afasta da vida, mas introduz-nos à vida, às situações do dia-a-dia, à escuta do sofrimento dos nossos irmãos e irmãs, ao grito dos pobres, à violência e às injustiças que ferem a sociedade e o planeta, para que não fiquemos indiferentes aos cristãos, mas sim aos cristãos que trabalham, aos cristãos criativos, aos cristãos proféticos".
A Palavra de Deus não é uma letra morta, mas sim espírito e vida. Citando Madeleine Delbrêl (uma mística francesa que trabalhou em ambientes de trabalho em Paris, morreu em 1964 e está actualmente em processo de beatificação), Francisco diz que "As condições para ouvir a Palavra de Deus são as do nosso 'hoje': as circunstâncias da nossa vida quotidiana e as necessidades do nosso próximo" (La alegría de creer, Santander 1997, 242-243).
Tudo isto nos compromete, aponta o Papa, antes de mais nada a colocar a Palavra de Deus no centro do cuidado pastoral, a escutá-la e a partir daí a escutar e a atender as necessidades dos outros.
Sr. Ramiro Pellitero Iglesias
Professor de Teologia Pastoral
Faculdade de Teologia
Universidade de Navarra
Publicado em "Igreja e nova evangelização".